sexta-feira, 8 de agosto de 2008

ÓDIO MORTAL - ÚLTIMA PARTE

- Marie – disse ele calmamente – não sei se vou me arrepender mais tarde, mas vou fazer o que acho certo. Se é assim que você quer, eu vou embora com este dinheiro. Vou refazer minha vida, pois eu não suporto mais a minha condição. Quem sabe com o tempo você não reconsidera a sua decisão e vem com as crianças para perto de mim. Eu vou estar sempre esperando por vocês! Nunca os esquecerei!

Harold enfiou a mão no bolso da camisa, de onde tirou o dinheiro que o irmão de Watts lhe dera e entregou a esposa.

- Esta é minha indenização pela demissão, o irmão do velho fez questão de pagar – disse Harold – Aceite ao menos este dinheiro, vocês têm direito a ele, será o suficiente para vocês por um mês ou dois.

Marie hesitou, mais sabia que não podia deixar os filhos morrerem de fome, e acabou aceitando o dinheiro.

Harold foi até o velho sofá, onde estavam seus dois pequenos filhos, que assistiam a discussão dos pais sem entenderem nada. Ao olhar para os dois pequeninos, Harold sentiu o coração partir-se e chorou dolorosamente, porque sabia que ficaria algum tempo sem vê-los. Juntou os dois e os abraçou, dizendo que os amaria para sempre. Depois se levantou, com os olhos marejados, e abraçou ternamente a esposa.

- Eu te amo, querida, amo todos vocês! Mas hoje, algo dentro de mim diz que é assim que tem que ser. Tenho que pensar em mim!

Depois do longo abraço, mais do que depressa, Harold pegou sua bolsa, fechou-a, e com a voz trêmula disse um triste adeus a sua família. E então saiu pela porta da casa sem dizer mais nada, apenas com a roupa do corpo e sua fortuna debaixo do braço.


EPÍLOGO

Exatamente um mês após a morte do coronel Watts, Harold achou que era a hora de procurar sua família e tentar convencer a mulher a juntar-se a ele. Ele não agüentava mais aquela distância, mesmo tendo agora uma vida extremamente confortável. Com os exatos seiscentos e dez mil euros que levara de Watts, ele comprou um apartamento de três quartos em uma cidade próxima a qual ele vivia com a família, com um mobília toda nova, e também fizera a operação para diminuir sua invalidez. Agora vestia roupas novas e elegantes, e estava com ótima aparência, e naquele momento ele percorria uma estreita rodovia a caminho de sua antiga casa, a bordo de um belo automóvel Volvo prateado. E Harold ainda tinha uma razoável quantia em dinheiro aplicada no banco, o que lhe garantiria aquele padrão de vida até o fim dos seus dias.

Ao estacionar o carro em frente sua antiga casa, tudo parecia igual. Ele desceu do carro, apoiando-se em uma elegante bengala envernizada, devido à recente cirurgia na perna. Perguntou sobre Marie e as crianças, e a atual moradora não soube informar o paradeiro deles. Bateu à porta do vizinho, que disse ter visto a família de Harold se mudar a cerca de duas semanas.

“Devem ter ido para a casa de minha sogra” – pensou ele

Voltou para o carro e seguiu até a casa da mãe de Marie. Ele chamou pela mulher, porém uma pessoa estranha veio atendê-lo. Uma jovem moça lhe explicou que a família que ali morava havia se mudado ha alguns dias, sem deixar endereço.

- A senhora tem certeza que não disseram para onde foram? – perguntou Harold
- Não senhor – respondeu a moça – Mas acho que tenho uma coisa para o senhor.
- Para mim? – indagou ele
- Sim, por acaso o senhor é marido da moça mais nova?
- Sim, sou eu, meu nome é Harold!
- Então é o senhor mesmo – confirmou ela – ela lhe deixou uma carta. Um momento, vou trazer para o senhor.

Harold começou a ficar preocupado. Para onde teriam ido? A mãe de Marie também era pobre, e muito doente. Sem dinheiro, não poderiam ter ido longe. Harold encostou-se no pára-lama de seu Volvo enquanto aguardava a moça com a carta. Até que ela retornou, e lhe entregou um simples envelope branco, escrito apenas em um dos lados: “de Marie para Harold”. Ele tirou os óculos escuros e os guardou no bolso da camisa, abriu o envelope e começou a ler a carta:

“Querido Harold, cedo ou tarde sei que você virá nos procurar e tentar nos levar com você. Espero que você entenda, mas nunca mudarei de idéia. Meus princípios cristãos não me permitem viver ao lado de um homem que fez o que você fez, então continuarei levando minha vida como sempre. Não se preocupe conosco, estamos indo para um lugar seguro e tranqüilo. A mamãe tomará conta dos pequenos enquanto eu estiver trabalhando. Acredito que conseguiremos nos manter com alguma dignidade. Penso muito em você, e todas as noites as crianças choram, sentido a sua falta. Você vai fazer muita, muita falta mesmo! Uma pena ter escolhido este caminho... Espero que mesmo assim, consiga ser feliz”.

Com amor,

Marie.”

Harold agradeceu a moça, despediu-se e entrou em seu carro. Acomodou-se no banco e respirou fundo. Não sabia direito o que pensar. Ele perdera a família, porém estava levando a vida que sempre quis. Queria chorar, mas não conseguiu. Pensou que o tempo que passou sendo humilhado por Watts o deixara daquela forma, com o coração de pedra, e sem qualquer remorso. Então Harold sentiu saudades de sua família, mas nada que o abalasse profundamente. Ele estava simplesmente encantado com sua nova vida. Nada podia deprimi-lo agora. Ele olhou-se no espelho retrovisor, e vislumbrou sua ótima aparência. Olhou para o interior do carro, todo forrado em couro e cheirando a novo. Abriu sua carteira, e ali viu seus cartões de crédito, talão de cheques e muito dinheiro. Depois, visualizou seu bonito apartamento. Então ele apenas sorriu, pensando em quão tola sua esposa estava sendo em abdicar do conforto em função de uma vida carola. Em seguida ligou o carro e partiu.

Ao passar em frente à igreja, no centro da cidade, Harold viu diversos homens usando fardas. Foi então que se lembrou que naquele dia fazia exatamente um mês que o velho Watts havia morrido, fato que modificou totalmente seu destino.

“Deve ser a missa de primeiro mês de falecimento” – pensou ele

Harold estacionou em frente à igreja, baixou o vidro escuro do carro e observou o movimento. Ele viu os velhos militares se cumprimentando e entre eles pôde reconhecer o irmão do coronel. Harold fez um balanço de tudo o que aconteceu naquele último mês e apesar de tudo, sentiu-se extremamente satisfeito. E pensou na devoção de Marie e do coronel a Deus, concluindo que os dois não passavam de otários.

“Uma continua na miséria” – pensou – “e o outro a sete palmos debaixo da terra”.

Harold deu uma gostosa risada, como se tivesse contado uma anedota, ainda que com humor negro, para si mesmo. Então se espreguiçou, colocou seus óculos escuros, ligou o rádio e partiu, a toda velocidade, para sua vida nova, onde até aquele momento Deus não parecia querer atrapalhá-lo...


FIM

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

ÓDIO MORTAL - PARTE IV

Voltando ao depósito, Harold encontrou Watts ainda no chão, com as duas mãos sobre o coração, como se estivesse tentando evitar que ele explodisse. Então o velho olhou para cima e viu Harold diante dele, com a maleta marrom debaixo de um dos braços.

- Por favor, filho, aí dentro tem dinheiro suficiente para você e sua família viverem com muito conforto, para o resto da vida de vocês! Não me deixe morrer!

Nesse instante Harold sentiu-se dividido.

- Está certo, sr. Watts. Vou chamar agora mesmo sua ambulância e vou desaparecer para sempre.

- Deus o abençoe, filho, obrigado! Agora vá depressa, eu não tenho muito tempo...

Harold dirigiu-se para frente da loja, onde se encontrava o telefone. Sem soltar a maleta, ele pegou o telefone e discou o número de emergências. Ao discar o último número, subitamente Harold bateu o telefone, encerrando a ligação. Harold imaginou que, se chamasse socorro para Watts, provavelmente quando se recuperasse ele o acusaria de tê-lo tentado matar e de ter roubado seu tesouro. Harold sorriu ao imaginar isso, e retornou com a maleta ao depósito.

O velho permanecia na mesma situação, se contorcendo de dor e encharcado de suor.

- O que houve? Eu não o ouvi dizer nada ao telefone! O que você pensa que está fazendo?
- Acha que sou tão idiota assim, coronel? Se eu salvá-lo, assim que se sentir melhor, sei que o senhor vai me colocar atrás das grades!

Watts sentiu que seu fim estava próximo. Talvez fosse impossível convencer Harold de que pudesse não denunciá-lo e deixá-lo em paz. E Harold parecia realmente decidido.

- Me desculpe, senhor. Essa é minha única chance de ter uma ótima vida com minha família, e não posso correr o risco de ter o senhor no meu encalço!

- Vai ter que confiar em mim, Harold, eu o deixarei em paz! – implorou o velho
- Me desculpe... Lamento... – disse Harold, abaixando-se e colocando o chaveiro de couro de volta no bolso de Watts – Acho que está na hora de o senhor descansar...

Harold afastou se lentamente de Watts, que já não tinha mais forças para contestar sua atitude. Voltou para o balcão e sentou-se no banco onde estivera almoçando minutos antes. Colocou a maleta no colo e a abriu novamente. As grandes notas verdes de quinhentos euros fizeram os pensamentos de Harold irem muito longe, especialmente quando, contando o dinheiro de forma rápida, ele constatou que ali havia cerca de meio milhão... E ele ainda podia ouvir o velho Watts chamar por socorro dentro do depósito, e minutos depois, tudo se silenciou.

Ele pegou sua velha bolsa onde carregava o almoço, esvaziou-a e a encheu com os maços de dinheiro, que couberam com muita dificuldade. Harold estava eufórico e nervoso, pois não via a hora de abandonar tudo aquilo e partir para uma nova vida. Porém, era preciso ter cuidado, pois não poderia simplesmente fugir. Ele voltou ao depósito, e a primeira coisa que viu foi o corpo de Watts estendido no chão, com a boca e olhos abertos, com uma expressão de quem havia visto um fantasma. Verificou o coração e o pulso do homem, sem obter qualquer sinal de vida. Harold não sentiu nada, apenas alívio. Agora não teria mais que suportar o homem que lhe tirara toda a auto-estima. Ele guardou sua velha bolsa com o dinheiro em uma prateleira alta e começou a agir como deveria. Correu até o telefone como se estivesse mesmo desesperado e chamou uma ambulância. Na seqüência, correu até a farmácia, que ficava a uns 40 metros dali, e solicitou a presença do farmacêutico na loja, explicando o ocorrido ao homem. E por último, pegou a caderneta telefônica dentro de uma gaveta no balcão e ligou para um irmão do falecido, que era o único parente que parecia fazer contato com ele...

Cerca de uma hora mais tarde, tudo estava terminado: a ambulância levara o corpo do coronel, e o irmão do velho, que morava não muito longe dali, chegara para tomar conta de tudo. O homem adiantou a Harold que a loja não funcionaria mais, pois ele não tinha a menor condição de tocar o negócio por já possuir outros, e que Harold estava então demitido. Ele simulou certa decepção e, após receber uma pequena quantia em dinheiro como indenização, partiu para casa. E mal sabia o irmão de Watts que Harold já providenciara sua própria indenização, que lhe daria o luxo de se aposentar definitivamente!

Harold se dirigiu ao ponto de ônibus. Ele sentia que a qualquer momento ele mesmo teria um ataque cardíaco se não se acalmasse. Ele não conseguia se controlar, e muito menos parar de pensar nas mudanças que viriam. Toda a família se mudaria para outra cidade, numa bela casa, com todo o conforto, e ele poderia abrir um negócio próprio ou até mesmo viver de renda, e ainda poderia fazer uma cara cirurgia que poderia lhe devolver grande parte dos movimentos da perna. Quando finalmente chegou em casa, encontrou a esposa vestindo os dois filhos pequenos que tinham saído do banho. Harold ficou observando-os, em silencio.

- Olá, querido! Porque está em casa tão cedo? Aconteceu alguma coisa?

Harold apenas assentiu com a cabeça com um sim enigmático.

- Não me diga que.... Oh não, não me diga que você se desentendeu com o homem e você foi demitido!

Harold repetiu o gesto com a cabeça, deixando escapar uma ponta de riso.

- Meu Deus, e agora, querido? O que vai ser de nós! Você sabe que mal pode trabalhar, e eu tenho que cuidar dos meninos, e agora?

A pobre Marie começou a chorar e se lamentar, quando Harold aproximou-se da esposa, pegou-a pelos braços e disse:

- Calma, querida. Tudo acabou, para sempre. Vamos começar uma vida nova! Vamos embora desta casa horrível, dessa cidade, eu você e os meninos! Teremos uma linda casa, e eu lhe prometo, nunca mais iremos passar nenhuma necessidade!

Marie afastou-se do marido, incrédula no que acabara de ouvir.

- Você está delirando, homem! Do que você está falando? Nós estamos na miséria como nunca! E você vem falar em “linda casa”? Por acaso você ganhou na loteria?

Harold não se conteve e soltou uma gargalhada, o que provocou mais choro em sua mulher. Ele então se aproximou da mulher e entregou-lhe a velha bolsa onde costumava carregar o almoço.

- Abra – disse Harold, ainda sorridente.

Ao abrir a bolsa e constatar o que havia dentro, Marie ficou ainda mais branca e pálida do que já aparentava ser. Ela apanhou um maço de dinheiro, deixando a bolsa cair no chão quase que involuntariamente. Enquanto olhava as enormes notas esverdeadas, seus pensamentos se embaralhavam, pois era impossível imaginar o que aquela enorme quantia fazia em poder de um homem pobre e aleijado.

- Então é isso? – indagou Marie, enxugando as lágrimas – Ganhou na loteria, querido? Você nunca me contou que apostava nestas coisas... Não posso acreditar!

Quando as faces de Maria se modificaram, e ela começava a vibrar com a suposta novidade, Harold a interrompeu.

- Querida, não foi bem assim, eu nunca apostei em loterias, você sabe que eu não teria dinheiro para isso.

E Harold iniciou o relato do que realmente ocorrera.
Ao terminar de ouvir a história do marido, Marie permaneceu calada.

- Querida, diga alguma coisa! Eu sei que não foi a melhor saída para nós, mas era uma oportunidade única!

- Oportunidade? Harold, você deixou o homem morrer e roubou o dinheiro dele! Você chama isso de oportunidade? Querido, você cometeu um crime!

Marie começou a chorar histericamente, enquanto empurrava o marido, que tentava contê-la, segurando-a.

- Tire estas mãos de mim! – berrou Marie – Deus vai te castigar, homem! Esse dinheiro só vai nos trazer desgraça!
- Não diga uma bobagem dessas – disse Harold – esse dinheiro não é desgraça, é a salvação! Não seja hipócrita, a verdade é que, sem este dinheiro, vamos ser uma família de miseráveis para sempre!
- Não me importo de ser miserável – disse Marie, ainda mais nervosa – O que eu não quero é queimar no inferno por me aproveitar dessa situação! Harold, pense nisso! O homem morreu porque você negou ajuda a ele e depois o roubou!

- Pare com isso, mulher! Mortos não podem gastar! – zombou Harold
- Isso não é o mais grave! Você sabe, só Deus pode tirar a vida de uma pessoa!

Harold explodiu com a mulher, diante de toda aquela discórdia.

- Pare já com isso, Marie! Chega! Não agüento mais essa sua mania de morrer de medo de Deus! Vejo você lendo a Bíblia e rezando toda noite, e o que Deus tem feito por nós? Abra essa mente mulher, e veja que, se Deus existe e gosta de nós, ele hoje nos mandou um presente! Tirou aquele velho ordinário da minha vida, e nos deu condições para viver dignamente! Vamos arrumar nossas coisas e ir embora, amanhã cedo não quero mais estar aqui! Teremos de tudo, casa, um carro, nossos filhos irão para boas escolas...

Marie afastou-se do marido, agora com um semblante frio e decidido.

- Não conte com isso, Harold. Nem eu nem meus filhos iremos desfrutar desse dinheiro sujo, esse dinheiro do demônio! Prefiro ser pobre sim, porém digna, digna de ter paz na eternidade!
- Eternidade? – disse Harold – Sua eternidade será a pobreza e a miséria se não aproveitar esta chance! Essa coisa de religião estragou sua cabeça mesmo, eu sempre disse que essa sua dedicação a essas coisas não ia dar certo! Você está cega!
- Pois bem – disse Marie – Vou lhe dizer uma coisa. Ou você se livra deste maldito dinheiro, ou eu e meus filhos iremos embora hoje mesmo, e você nunca mais nos verá! E você terá que fazer penitencia, muita penitencia, pelo ato horrível que você cometeu!

Harold viu que a coisa estava séria, mas de forma nenhuma pensava em ceder ao pedido da mulher. Ele tinha certeza que se fizesse tudo aquilo, agora sem emprego, a família terminaria na sarjeta como verdadeiros mendigos.

- Tem certeza do que está dizendo, Marie? Não quer pensar melhor sobre isso?
- Não, querido, já me decidi. Se você quiser viver com este dinheiro, nós terminamos aqui. Eu vou pegar os meninos e vou para a casa da minha mãe. Eu e as crianças amamos você, mas se você optar por este caminho do mal, nós vamos nos separar.

Harold viu que não tinha mais saída, teria que optar por manter a família unida, porém com ainda mais dificuldades, ou seguir sozinho numa vida nova e confortável. Era a hora de decidir...