sexta-feira, 8 de agosto de 2008

ÓDIO MORTAL - ÚLTIMA PARTE

- Marie – disse ele calmamente – não sei se vou me arrepender mais tarde, mas vou fazer o que acho certo. Se é assim que você quer, eu vou embora com este dinheiro. Vou refazer minha vida, pois eu não suporto mais a minha condição. Quem sabe com o tempo você não reconsidera a sua decisão e vem com as crianças para perto de mim. Eu vou estar sempre esperando por vocês! Nunca os esquecerei!

Harold enfiou a mão no bolso da camisa, de onde tirou o dinheiro que o irmão de Watts lhe dera e entregou a esposa.

- Esta é minha indenização pela demissão, o irmão do velho fez questão de pagar – disse Harold – Aceite ao menos este dinheiro, vocês têm direito a ele, será o suficiente para vocês por um mês ou dois.

Marie hesitou, mais sabia que não podia deixar os filhos morrerem de fome, e acabou aceitando o dinheiro.

Harold foi até o velho sofá, onde estavam seus dois pequenos filhos, que assistiam a discussão dos pais sem entenderem nada. Ao olhar para os dois pequeninos, Harold sentiu o coração partir-se e chorou dolorosamente, porque sabia que ficaria algum tempo sem vê-los. Juntou os dois e os abraçou, dizendo que os amaria para sempre. Depois se levantou, com os olhos marejados, e abraçou ternamente a esposa.

- Eu te amo, querida, amo todos vocês! Mas hoje, algo dentro de mim diz que é assim que tem que ser. Tenho que pensar em mim!

Depois do longo abraço, mais do que depressa, Harold pegou sua bolsa, fechou-a, e com a voz trêmula disse um triste adeus a sua família. E então saiu pela porta da casa sem dizer mais nada, apenas com a roupa do corpo e sua fortuna debaixo do braço.


EPÍLOGO

Exatamente um mês após a morte do coronel Watts, Harold achou que era a hora de procurar sua família e tentar convencer a mulher a juntar-se a ele. Ele não agüentava mais aquela distância, mesmo tendo agora uma vida extremamente confortável. Com os exatos seiscentos e dez mil euros que levara de Watts, ele comprou um apartamento de três quartos em uma cidade próxima a qual ele vivia com a família, com um mobília toda nova, e também fizera a operação para diminuir sua invalidez. Agora vestia roupas novas e elegantes, e estava com ótima aparência, e naquele momento ele percorria uma estreita rodovia a caminho de sua antiga casa, a bordo de um belo automóvel Volvo prateado. E Harold ainda tinha uma razoável quantia em dinheiro aplicada no banco, o que lhe garantiria aquele padrão de vida até o fim dos seus dias.

Ao estacionar o carro em frente sua antiga casa, tudo parecia igual. Ele desceu do carro, apoiando-se em uma elegante bengala envernizada, devido à recente cirurgia na perna. Perguntou sobre Marie e as crianças, e a atual moradora não soube informar o paradeiro deles. Bateu à porta do vizinho, que disse ter visto a família de Harold se mudar a cerca de duas semanas.

“Devem ter ido para a casa de minha sogra” – pensou ele

Voltou para o carro e seguiu até a casa da mãe de Marie. Ele chamou pela mulher, porém uma pessoa estranha veio atendê-lo. Uma jovem moça lhe explicou que a família que ali morava havia se mudado ha alguns dias, sem deixar endereço.

- A senhora tem certeza que não disseram para onde foram? – perguntou Harold
- Não senhor – respondeu a moça – Mas acho que tenho uma coisa para o senhor.
- Para mim? – indagou ele
- Sim, por acaso o senhor é marido da moça mais nova?
- Sim, sou eu, meu nome é Harold!
- Então é o senhor mesmo – confirmou ela – ela lhe deixou uma carta. Um momento, vou trazer para o senhor.

Harold começou a ficar preocupado. Para onde teriam ido? A mãe de Marie também era pobre, e muito doente. Sem dinheiro, não poderiam ter ido longe. Harold encostou-se no pára-lama de seu Volvo enquanto aguardava a moça com a carta. Até que ela retornou, e lhe entregou um simples envelope branco, escrito apenas em um dos lados: “de Marie para Harold”. Ele tirou os óculos escuros e os guardou no bolso da camisa, abriu o envelope e começou a ler a carta:

“Querido Harold, cedo ou tarde sei que você virá nos procurar e tentar nos levar com você. Espero que você entenda, mas nunca mudarei de idéia. Meus princípios cristãos não me permitem viver ao lado de um homem que fez o que você fez, então continuarei levando minha vida como sempre. Não se preocupe conosco, estamos indo para um lugar seguro e tranqüilo. A mamãe tomará conta dos pequenos enquanto eu estiver trabalhando. Acredito que conseguiremos nos manter com alguma dignidade. Penso muito em você, e todas as noites as crianças choram, sentido a sua falta. Você vai fazer muita, muita falta mesmo! Uma pena ter escolhido este caminho... Espero que mesmo assim, consiga ser feliz”.

Com amor,

Marie.”

Harold agradeceu a moça, despediu-se e entrou em seu carro. Acomodou-se no banco e respirou fundo. Não sabia direito o que pensar. Ele perdera a família, porém estava levando a vida que sempre quis. Queria chorar, mas não conseguiu. Pensou que o tempo que passou sendo humilhado por Watts o deixara daquela forma, com o coração de pedra, e sem qualquer remorso. Então Harold sentiu saudades de sua família, mas nada que o abalasse profundamente. Ele estava simplesmente encantado com sua nova vida. Nada podia deprimi-lo agora. Ele olhou-se no espelho retrovisor, e vislumbrou sua ótima aparência. Olhou para o interior do carro, todo forrado em couro e cheirando a novo. Abriu sua carteira, e ali viu seus cartões de crédito, talão de cheques e muito dinheiro. Depois, visualizou seu bonito apartamento. Então ele apenas sorriu, pensando em quão tola sua esposa estava sendo em abdicar do conforto em função de uma vida carola. Em seguida ligou o carro e partiu.

Ao passar em frente à igreja, no centro da cidade, Harold viu diversos homens usando fardas. Foi então que se lembrou que naquele dia fazia exatamente um mês que o velho Watts havia morrido, fato que modificou totalmente seu destino.

“Deve ser a missa de primeiro mês de falecimento” – pensou ele

Harold estacionou em frente à igreja, baixou o vidro escuro do carro e observou o movimento. Ele viu os velhos militares se cumprimentando e entre eles pôde reconhecer o irmão do coronel. Harold fez um balanço de tudo o que aconteceu naquele último mês e apesar de tudo, sentiu-se extremamente satisfeito. E pensou na devoção de Marie e do coronel a Deus, concluindo que os dois não passavam de otários.

“Uma continua na miséria” – pensou – “e o outro a sete palmos debaixo da terra”.

Harold deu uma gostosa risada, como se tivesse contado uma anedota, ainda que com humor negro, para si mesmo. Então se espreguiçou, colocou seus óculos escuros, ligou o rádio e partiu, a toda velocidade, para sua vida nova, onde até aquele momento Deus não parecia querer atrapalhá-lo...


FIM

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

ÓDIO MORTAL - PARTE IV

Voltando ao depósito, Harold encontrou Watts ainda no chão, com as duas mãos sobre o coração, como se estivesse tentando evitar que ele explodisse. Então o velho olhou para cima e viu Harold diante dele, com a maleta marrom debaixo de um dos braços.

- Por favor, filho, aí dentro tem dinheiro suficiente para você e sua família viverem com muito conforto, para o resto da vida de vocês! Não me deixe morrer!

Nesse instante Harold sentiu-se dividido.

- Está certo, sr. Watts. Vou chamar agora mesmo sua ambulância e vou desaparecer para sempre.

- Deus o abençoe, filho, obrigado! Agora vá depressa, eu não tenho muito tempo...

Harold dirigiu-se para frente da loja, onde se encontrava o telefone. Sem soltar a maleta, ele pegou o telefone e discou o número de emergências. Ao discar o último número, subitamente Harold bateu o telefone, encerrando a ligação. Harold imaginou que, se chamasse socorro para Watts, provavelmente quando se recuperasse ele o acusaria de tê-lo tentado matar e de ter roubado seu tesouro. Harold sorriu ao imaginar isso, e retornou com a maleta ao depósito.

O velho permanecia na mesma situação, se contorcendo de dor e encharcado de suor.

- O que houve? Eu não o ouvi dizer nada ao telefone! O que você pensa que está fazendo?
- Acha que sou tão idiota assim, coronel? Se eu salvá-lo, assim que se sentir melhor, sei que o senhor vai me colocar atrás das grades!

Watts sentiu que seu fim estava próximo. Talvez fosse impossível convencer Harold de que pudesse não denunciá-lo e deixá-lo em paz. E Harold parecia realmente decidido.

- Me desculpe, senhor. Essa é minha única chance de ter uma ótima vida com minha família, e não posso correr o risco de ter o senhor no meu encalço!

- Vai ter que confiar em mim, Harold, eu o deixarei em paz! – implorou o velho
- Me desculpe... Lamento... – disse Harold, abaixando-se e colocando o chaveiro de couro de volta no bolso de Watts – Acho que está na hora de o senhor descansar...

Harold afastou se lentamente de Watts, que já não tinha mais forças para contestar sua atitude. Voltou para o balcão e sentou-se no banco onde estivera almoçando minutos antes. Colocou a maleta no colo e a abriu novamente. As grandes notas verdes de quinhentos euros fizeram os pensamentos de Harold irem muito longe, especialmente quando, contando o dinheiro de forma rápida, ele constatou que ali havia cerca de meio milhão... E ele ainda podia ouvir o velho Watts chamar por socorro dentro do depósito, e minutos depois, tudo se silenciou.

Ele pegou sua velha bolsa onde carregava o almoço, esvaziou-a e a encheu com os maços de dinheiro, que couberam com muita dificuldade. Harold estava eufórico e nervoso, pois não via a hora de abandonar tudo aquilo e partir para uma nova vida. Porém, era preciso ter cuidado, pois não poderia simplesmente fugir. Ele voltou ao depósito, e a primeira coisa que viu foi o corpo de Watts estendido no chão, com a boca e olhos abertos, com uma expressão de quem havia visto um fantasma. Verificou o coração e o pulso do homem, sem obter qualquer sinal de vida. Harold não sentiu nada, apenas alívio. Agora não teria mais que suportar o homem que lhe tirara toda a auto-estima. Ele guardou sua velha bolsa com o dinheiro em uma prateleira alta e começou a agir como deveria. Correu até o telefone como se estivesse mesmo desesperado e chamou uma ambulância. Na seqüência, correu até a farmácia, que ficava a uns 40 metros dali, e solicitou a presença do farmacêutico na loja, explicando o ocorrido ao homem. E por último, pegou a caderneta telefônica dentro de uma gaveta no balcão e ligou para um irmão do falecido, que era o único parente que parecia fazer contato com ele...

Cerca de uma hora mais tarde, tudo estava terminado: a ambulância levara o corpo do coronel, e o irmão do velho, que morava não muito longe dali, chegara para tomar conta de tudo. O homem adiantou a Harold que a loja não funcionaria mais, pois ele não tinha a menor condição de tocar o negócio por já possuir outros, e que Harold estava então demitido. Ele simulou certa decepção e, após receber uma pequena quantia em dinheiro como indenização, partiu para casa. E mal sabia o irmão de Watts que Harold já providenciara sua própria indenização, que lhe daria o luxo de se aposentar definitivamente!

Harold se dirigiu ao ponto de ônibus. Ele sentia que a qualquer momento ele mesmo teria um ataque cardíaco se não se acalmasse. Ele não conseguia se controlar, e muito menos parar de pensar nas mudanças que viriam. Toda a família se mudaria para outra cidade, numa bela casa, com todo o conforto, e ele poderia abrir um negócio próprio ou até mesmo viver de renda, e ainda poderia fazer uma cara cirurgia que poderia lhe devolver grande parte dos movimentos da perna. Quando finalmente chegou em casa, encontrou a esposa vestindo os dois filhos pequenos que tinham saído do banho. Harold ficou observando-os, em silencio.

- Olá, querido! Porque está em casa tão cedo? Aconteceu alguma coisa?

Harold apenas assentiu com a cabeça com um sim enigmático.

- Não me diga que.... Oh não, não me diga que você se desentendeu com o homem e você foi demitido!

Harold repetiu o gesto com a cabeça, deixando escapar uma ponta de riso.

- Meu Deus, e agora, querido? O que vai ser de nós! Você sabe que mal pode trabalhar, e eu tenho que cuidar dos meninos, e agora?

A pobre Marie começou a chorar e se lamentar, quando Harold aproximou-se da esposa, pegou-a pelos braços e disse:

- Calma, querida. Tudo acabou, para sempre. Vamos começar uma vida nova! Vamos embora desta casa horrível, dessa cidade, eu você e os meninos! Teremos uma linda casa, e eu lhe prometo, nunca mais iremos passar nenhuma necessidade!

Marie afastou-se do marido, incrédula no que acabara de ouvir.

- Você está delirando, homem! Do que você está falando? Nós estamos na miséria como nunca! E você vem falar em “linda casa”? Por acaso você ganhou na loteria?

Harold não se conteve e soltou uma gargalhada, o que provocou mais choro em sua mulher. Ele então se aproximou da mulher e entregou-lhe a velha bolsa onde costumava carregar o almoço.

- Abra – disse Harold, ainda sorridente.

Ao abrir a bolsa e constatar o que havia dentro, Marie ficou ainda mais branca e pálida do que já aparentava ser. Ela apanhou um maço de dinheiro, deixando a bolsa cair no chão quase que involuntariamente. Enquanto olhava as enormes notas esverdeadas, seus pensamentos se embaralhavam, pois era impossível imaginar o que aquela enorme quantia fazia em poder de um homem pobre e aleijado.

- Então é isso? – indagou Marie, enxugando as lágrimas – Ganhou na loteria, querido? Você nunca me contou que apostava nestas coisas... Não posso acreditar!

Quando as faces de Maria se modificaram, e ela começava a vibrar com a suposta novidade, Harold a interrompeu.

- Querida, não foi bem assim, eu nunca apostei em loterias, você sabe que eu não teria dinheiro para isso.

E Harold iniciou o relato do que realmente ocorrera.
Ao terminar de ouvir a história do marido, Marie permaneceu calada.

- Querida, diga alguma coisa! Eu sei que não foi a melhor saída para nós, mas era uma oportunidade única!

- Oportunidade? Harold, você deixou o homem morrer e roubou o dinheiro dele! Você chama isso de oportunidade? Querido, você cometeu um crime!

Marie começou a chorar histericamente, enquanto empurrava o marido, que tentava contê-la, segurando-a.

- Tire estas mãos de mim! – berrou Marie – Deus vai te castigar, homem! Esse dinheiro só vai nos trazer desgraça!
- Não diga uma bobagem dessas – disse Harold – esse dinheiro não é desgraça, é a salvação! Não seja hipócrita, a verdade é que, sem este dinheiro, vamos ser uma família de miseráveis para sempre!
- Não me importo de ser miserável – disse Marie, ainda mais nervosa – O que eu não quero é queimar no inferno por me aproveitar dessa situação! Harold, pense nisso! O homem morreu porque você negou ajuda a ele e depois o roubou!

- Pare com isso, mulher! Mortos não podem gastar! – zombou Harold
- Isso não é o mais grave! Você sabe, só Deus pode tirar a vida de uma pessoa!

Harold explodiu com a mulher, diante de toda aquela discórdia.

- Pare já com isso, Marie! Chega! Não agüento mais essa sua mania de morrer de medo de Deus! Vejo você lendo a Bíblia e rezando toda noite, e o que Deus tem feito por nós? Abra essa mente mulher, e veja que, se Deus existe e gosta de nós, ele hoje nos mandou um presente! Tirou aquele velho ordinário da minha vida, e nos deu condições para viver dignamente! Vamos arrumar nossas coisas e ir embora, amanhã cedo não quero mais estar aqui! Teremos de tudo, casa, um carro, nossos filhos irão para boas escolas...

Marie afastou-se do marido, agora com um semblante frio e decidido.

- Não conte com isso, Harold. Nem eu nem meus filhos iremos desfrutar desse dinheiro sujo, esse dinheiro do demônio! Prefiro ser pobre sim, porém digna, digna de ter paz na eternidade!
- Eternidade? – disse Harold – Sua eternidade será a pobreza e a miséria se não aproveitar esta chance! Essa coisa de religião estragou sua cabeça mesmo, eu sempre disse que essa sua dedicação a essas coisas não ia dar certo! Você está cega!
- Pois bem – disse Marie – Vou lhe dizer uma coisa. Ou você se livra deste maldito dinheiro, ou eu e meus filhos iremos embora hoje mesmo, e você nunca mais nos verá! E você terá que fazer penitencia, muita penitencia, pelo ato horrível que você cometeu!

Harold viu que a coisa estava séria, mas de forma nenhuma pensava em ceder ao pedido da mulher. Ele tinha certeza que se fizesse tudo aquilo, agora sem emprego, a família terminaria na sarjeta como verdadeiros mendigos.

- Tem certeza do que está dizendo, Marie? Não quer pensar melhor sobre isso?
- Não, querido, já me decidi. Se você quiser viver com este dinheiro, nós terminamos aqui. Eu vou pegar os meninos e vou para a casa da minha mãe. Eu e as crianças amamos você, mas se você optar por este caminho do mal, nós vamos nos separar.

Harold viu que não tinha mais saída, teria que optar por manter a família unida, porém com ainda mais dificuldades, ou seguir sozinho numa vida nova e confortável. Era a hora de decidir...

quinta-feira, 31 de julho de 2008

ÓDIO MORTAL - PARTE III

Na hora do almoço de Harold, Watts havia ido à Igreja, como fazia todos os dias. Harold estava sentado em um pequeno banco de madeira atrás do balcão de pedra, comendo o seu arroz com couve cozida dentro de uma pequena lata de metal. Ele pousou a lata sobre as pernas, baixou a cabeça e começou a chorar em um tom baixo, sentindo-se a pior criatura sobra a Terra. Sua condição física, a miséria e os maus tratos no trabalho estavam fazendo com que ele desmoronasse por completo. Foi quando um estrondo provocado por um tapa de mãos abertas sobre o balcão deu lhe um susto enorme.

- Senhor Harold, o que eu faço com o senhor? Imagine os meus clientes chegando em meu estabelecimento e se deparando com um funcionário comendo estas coisas asquerosas aqui na frente!

- Mas senhor, eu estava sozinho na loja, alguém poderia entrar e roubar algo, então eu achei melhor...
- Você está sempre me contrariando! – rosnou Watts, indo de encontro a Harold por trás do balcão – Você não tem qualquer disciplina, rapaz! Se tivesse passado pelo exército não seria assim!
- Mas senhor, eu estou quase sempre sozinho aqui, não acho uma boa idéia sair daqui da frente da loja... O senhor poderia contratar alguém para me ajudar, então...

Watts deu uma gargalhada.

- O senhor é um imprestável, sr. Harold! E está se aproveitando de mim! Justo eu, que fiz a caridade de lhe contratar o senhor, que é um inválido, um inútil! Se não fosse por mim o senhor estaria na rua da amargura, o senhor e sua família!

Harold sentiu um frio lhe percorrer a espinha. O velho militar estava passando dos limites. Ele levantou-se e foi para os fundos da loja, onde ficava o depósito, deixando Watts para trás.

- Volte aqui, seu maldito aleijado! Nunca me deixe falando sozinho!

Enquanto percorria com a dificuldade habitual o estreito corredor, Harold sentiu um estalo eu seu cérebro, que o fez sentir como se houvesse uma pedra de gelo dentro de sua cabeça. Começou a tremer e suar frio. Era o ódio e o medo se intercalando dentro de sua mente. Sabia que chegara a seu limite. Watts o alcançou, agarrou-o e o prensou contra uma das paredes do depósito, segurando-o pelo colarinho.

- Seu merda, quem você está pensando que é? Pela sua audácia, vou demiti-lo agora mesmo e jogá-lo no meio da rua, seu verme!

Nesta hora Harold sentiu medo como nunca em sua vida. Os olhos claros do ex-coronel fuzilando-o com ódio estavam deixando-o desesperado. Mas repentinamente, Harold novamente inchou-se do ódio que já o acompanhava há meses. E pensou naquele homem desprezível, porém admirado por todos da cidade como um homem de bem, que servira à pátria por anos e era freqüentador da Igreja. Um homem que dizia ter princípios e ser temente a Deus, mas que se comportava como o próprio Diabo. Harold não sabia o que fazer para se livrar dos braços do velho, que apesar da idade e da magreza tinha um bom condicionamento físico. Naquele instante ele pela primeira vez encarou o patrão e cuspiu-lhe no meio dos olhos, quando aproveitou para empurrar Watts e sair correndo em direção da porta. Mas logo atrás, blasfemando e transbordando de ódio, vinha o sr. Watts.

- Seu rato miserável, vai levar a maior lição de sua vida! – gritou o velho

Ao invés de agarrá-lo por trás, Watts desferiu um forte soco em sua nuca, o que fez Harold despencar de peito no chão, além de bater o nariz com violência contra o piso. Watts pisoteou sua perna direita, a que lhe conferia a invalidez, o que fez o empregado urrar de dor.

- Eu vou matá-lo, seu desgraçado, ninguém encosta um dedo sequer no coronel Joseph Watts!

Enquanto Harold continuava gemendo e se debatendo desesperadamente, acertou a perna esquerda em uma das estantes de aço, e derrubou sobre si mesmo várias barras de ferro de diversas medidas, que rolaram pelo chão. O velho continuava a chutá-lo e insultá-lo, ficando cada vez mais vermelho de ódio, quando de repente as faces de Watts congelaram. Os golpes cessaram, e ele deu alguns passos para trás e apoiou-se contra uma bancada de madeira. Estava ofegante, e mal conseguia pronunciar qualquer palavra.

- Meu Jesus Cristo, meu coração! - disse o velho com dificuldade – Seu imprestável, levante daí e chame uma ambulância, isso tudo é culpa sua! Oh meu Deus, socorro oh Jesus...

Harold não acreditou no que estava presenciando. Já ouvira o velho Watts falar com conhecidos na loja sobre problemas cardíacos e medicamentos que tomava regularmente. E ali estava ele, debruçado na bancada, ficando mais vermelho e inchado a cada segundo. Harold levantou-se, e apanhou do chão uma das barras que caíram, que media cerca de um metro de comprimento e tinha a espessura de uma caneta esferográfica. Cego de ódio, apontou a barra no peito do homem e disse:

- Acha que Deus pode salvá-lo, seu velho desgraçado?
- Pelo amor de Deus, tenha piedade, chame uma ambulância! – implorava Watts
- Agora você vai pagar por tudo o que me fez! – dizia Harold, pressionando a ponta da barra contra o tórax de Watts – Não adianta chamar por Deus, pois hoje o Diabo vem buscá-lo, e o Diabo sou eu!

Harold espumava de ódio, um tanto fora de si, como se alguma força estranha estivesse por trás daquelas palavras. Ao fitar Harold nos olhos, Watts por um momento esquecera das agulhadas que sentia no coração, pois naquela ora o medo de ser assassinado por um homem que devia lhe odiar mais que tudo na vida era muito pior. Segundos depois, tombou de lado no corredor. Harold observava o patrão friamente, sedento para cravar a barra de ferro no peito do homem. Quando segurou firme a barra com as duas mãos, pronto para dar cabo de Watts, o velho implorou:

- Por favor, eu lhe peço, não faça isso. Eu sou militar, é o meu jeito de lidar com as pessoas, nunca lhe fiz nada por mal, não tenho nada contra você!
- Seu miserável, tudo o que me fez passar nesta espelunca não tem perdão! Não tem mais conserto, você me arruinou como homem!

Harold percebeu que aqueles poderiam ser os últimos minutos de vida de Watts, pois a dor que ele sentia no peito parecia estar dilacerando-o completamente.

- O senhor sabe o que é mais incrível? Nem vou precisar sujar minhas mãos com o seu maldito sangue. Você vai morrer aí no chão, todo babado, seu velho nojento, e eu vou ficar aqui assistindo – zombou Harold, largando a barra de ferro e sentando-se sobre o tampo de madeira da bancada.

- Ouça Harold – disse Watts, que naquele momento parecia um tanto aliviado da dor – Aqui, no meu bolso direito – apontou ele – Minhas chaves, uma delas abre minha sala nos fundos, e outra abre a última gaveta da escrivaninha. Há muito dinheiro lá dentro, muito mesmo, parte de minhas economias de toda a vida. É tudo seu, pegue tudo e vá embora! Antes apenas chame uma ambulância, por favor...

Harold não acreditou muito naquela história, mas não tinha nada a perder. Virou o corpo do velho e enfiou a mão em seu bolso, retirando dele um pequeno chaveiro de couro. Em seguida, correu para a sala dos fundos, enquanto Watts continuava a implorar por uma ambulância. Ele jamais tinha entrado naquela sala. O pequeno cômodo era repleto de artefatos militares, tais como bandeiras, flâmulas e medalhas. No meio da sala havia uma antiga escrivaninha de madeira escura com três grandes gavetas. Harold meteu a outra chave na última gaveta, que se abriu com muita dificuldade. Dentro dela havia uma velha maleta de couro marrom. Ao abri-la, Harold quase ficou louco, diante das dezenas de grossos maços de notas de quinhentos euros que ali estavam. Ali deveria ter muito mais do que o pobre Harold ganhara ao longo de seus trinta e três anos. E antes que começassem os devaneios sobre o que poderia fazer com aquela pequena fortuna, ele fechou a maleta, fechou a gaveta à chave e seguiu com a maleta para a fora da sala, sem esquecer de trancá-la.

terça-feira, 22 de julho de 2008

ÓDIO MORTAL - PARTE II

Joseph Watts era um homem maduro, na casa dos sessenta. Suas principais características eram o seu autoritarismo e sua avareza. Viúvo e sem filhos, nascido em família tradicional e católica, ele servira por vários anos ao exército, no posto de sargento. Quando se aposentou alguns anos antes do previsto, devido a problemas cardíacos, abrira a loja de ferragens no centro em um antigo salão de propriedade de sua família, que anteriormente era alugado a uma mercearia. Dizia-se pela cidade que Watts tinha muito dinheiro, mas que por medo de assaltos, ou por pura avareza, não tinha sequer um carro, e sempre trajava as mesmas roupas, visivelmente puídas e gastas. Ele mesmo abria sua loja todos os dias às oito da manhã, horário em que Harold geralmente já estava esperando pelo seu odiado patrão. O sr. Watts levava cada um de seus dias de maneira idêntica e muito regrada, sem nem imaginar que naquele dia abafado aconteceriam fatos bem anormais.

Pouco antes das sete, Harold se levantou. Sentiu-se absolutamente atormentado e agitado. Tomou um banho rápido e, enquanto se vestia, pensou no que dissera sobre Deus à sua esposa Marie na noite anterior. Foi quando pensou:

- Já que Deus parece querer me prejudicar, quem sabe o Diabo não queira me ajudar?

No mesmo instante, ele se deu conta do pensamento que formulara e se espantou consigo mesmo. Ele nunca tivera qualquer educação religiosa, porém tal conjectura o deixou perplexo. Harold sempre fora uma referencia de homem calmo e sossegado, acostumado com a vida difícil que tantas outras pessoas também têm que levar. E nas últimas semanas ele mudara demais, blasfemando e praguejando o tempo todo devido à sua situação. Harold vestiu a camisa e sentou-se na cama. Começou a pensar em Marie, nos filhos e nas contas que tinha para pagar. Sua família dependia dele. Então ele respirou fundo, levantou-se e saiu para trabalhar, decidido a esquecer do ódio ao sr. Watts e os pensamentos sombrios, em nome da sobrevivência de sua família.

Quando Harold chegou em frente ao trabalho, a loja ainda estava fechada. Eram dez para as oito. De repente uma das portas se abriu, e ele se viu de frente com a figura que vinha lhe tirando o sono. Com uma magreza fora do comum, um rosto ossudo, de cabelos brancos bem curtos, vestindo camisa xadrez de flanela, calça de veludo e botas surradas, lá estava o sr. Watts, fitando Harold com um olhar que mesclava desprezo e nojo.

- Bom dia, sr. Watts! – disse Harold, timidamente
- Vejam só o estado em que se encontra esta calçada! – gritou Watts – aqueles malditos mendigos andaram por aqui novamente! Varra já toda esta sujeira!

Da mesma forma que sentia ódio mortal daquele velho homem, Harold sentia muito medo dele também. Watts tinha um timbre grave e autoritário que às vezes o fazia tremer e perder a voz. Por esse motivo, ele apenas disse um seco “sim, senhor” e foi cumprir a ordem dada. Quando amontoou todo o lixo no meio da calçada e se preparava para colocá-lo na lata de ferro, ouviu novamente aquela voz firme, que no mesmo instante o fez derrubar a vassoura que segurava.

- Sr. Harold, acha que lhe pago para brincar com essa vassoura aqui fora o dia todo? Há dois clientes dentro da loja aguardando atendimento! Afinal, você é cego ou aleijado?

Harold estremeceu.

- Mas senhor, como o senhor estava no balcão eu pensei...
- Você não pensou nada! – explodiu Watts – Quem pensa aqui sou eu, meu rapaz! E lembre-se aqui a autoridade vem de cima para baixo, e a responsabilidade de baixo para cima! Agora recolha logo tudo isso.

Harold apanhou do chão a vassoura e a pá de ferro, debaixo dos olhos coruscantes do patrão. Subitamente ele sentiu dentro de si a raiva da noite passada, quando olhou para a pesada pá de lixo. Pensou no estrago que poderia fazer com ela naquele rosto que o observava. Com muita dificuldade, esquivou-se do tentador desejo e terminou seu serviço, indo atender dois carpinteiros que aguardavam dentro da loja.

sábado, 19 de julho de 2008

ÓDIO MORTAL - Parte I

Harold despertou às três da madrugada. Ainda faltavam quatro horas para se levantar e ir para o trabalho. Mas um súbito acesso de raiva o impediu de continuar dormindo. O motivo era seu chefe, o esquelético senhor Watts. Harold trabalhava para ele há um ano em sua loja de ferragens no centro da cidade, onde era constantemente humilhado, além de trabalhar sozinho em um estabelecimento que exigia no mínimo o triplo de funcionários. Mas Harold não podia abandonar o trabalho, pois era legalmente incapacitado de trabalhar, devido a um acidente que sofreu quando trabalhava com construção civil, o que lhe custou parte do movimento de uma das pernas. Harold era casado, tinha dois filhos e morava de aluguel no subúrbio da cidade. Com sua parca aposentadoria do Estado, somada ao salário absurdamente baixo que ganhava na loja, Harold dificilmente conseguia manter a família alimentada e es contas pagas.

O sr. Watts sabia das dificuldades do pobre Harold, e abusava de sua condição constantemente. E era esse o motivo daquela insônia. Harold, que sempre fora submisso a toda a sorte de insultos e humilhações no trabalho, agora estava a ponto de explodir. Ele se levantou lentamente para não acordar sua jovem esposa, que passava o dia cuidando dos filhos, e foi até a cozinha, arrastando sua perna direita, para beber água. Ao abrir a geladeira, a mísera visão de uma garrafa de água, um maço de couves, um recipiente de arroz e uma caixa de leite conseguiu deixá-lo ainda mais irritado.

- Desgraça de vida miserável – murmurou ele, batendo a porta da velha geladeira, desistindo de beber a água

A caminho do quarto, ele se deparou com a esposa, a doce Marie.

- O que faz acordado, querido?
- Não consigo mais pregar o olho, é só isso – respondeu Harold, secamente
- Não é a primeira vez que vejo você vagando pela casa durante a noite. O que está acontecendo? – indagou Marie
- Aquele Watts é um demônio. Eu quero matá-lo! Juro que quero!
- Não diga isso querido, pelo amor de Deus. É graças a esse seu emprego que conseguimos nos sustentar!
- Não importa, não agüento mais! Não suporto mais olhar para aquele homenzinho com cara de caveira, e aquele ar prepotente. E ele vive dizendo que devo agradecer a ele, porque não dão empregos a aleijados.
- Mas é verdade, querido – disse Marie, pegando Harold pelo braço – se você não trabalhasse naquela loja, seria muito mais difícil para nós.
- Você tem razão – concordou ele – Mas tem sido difícil agüentar! Trabalho como um burro de cargas, carregando caixas pesadas cheias de parafusos e ferramentas, sem ninguém para me ajudar. Algumas noites mal consigo dormir por causa da dor na perna acidentada.
- Se Deus quiser, tudo ainda vai melhorar! – disse Marie
- Deus? – indagou Harold – Você e essa sua mania de religião! Deus só quer é me ferrar, só pode ser isso! Desde que despenquei daquele maldito andaime, nossa vida virou um inferno!
- Eu seu, querido, mas...
- Mas eu tenho que fazer alguma coisa para muda isso, Marie. Antes que eu mate aquele homem. Agora voltemos para a cama – disse Harold, enquanto tomava o rumo do quarto.