quinta-feira, 7 de agosto de 2008

ÓDIO MORTAL - PARTE IV

Voltando ao depósito, Harold encontrou Watts ainda no chão, com as duas mãos sobre o coração, como se estivesse tentando evitar que ele explodisse. Então o velho olhou para cima e viu Harold diante dele, com a maleta marrom debaixo de um dos braços.

- Por favor, filho, aí dentro tem dinheiro suficiente para você e sua família viverem com muito conforto, para o resto da vida de vocês! Não me deixe morrer!

Nesse instante Harold sentiu-se dividido.

- Está certo, sr. Watts. Vou chamar agora mesmo sua ambulância e vou desaparecer para sempre.

- Deus o abençoe, filho, obrigado! Agora vá depressa, eu não tenho muito tempo...

Harold dirigiu-se para frente da loja, onde se encontrava o telefone. Sem soltar a maleta, ele pegou o telefone e discou o número de emergências. Ao discar o último número, subitamente Harold bateu o telefone, encerrando a ligação. Harold imaginou que, se chamasse socorro para Watts, provavelmente quando se recuperasse ele o acusaria de tê-lo tentado matar e de ter roubado seu tesouro. Harold sorriu ao imaginar isso, e retornou com a maleta ao depósito.

O velho permanecia na mesma situação, se contorcendo de dor e encharcado de suor.

- O que houve? Eu não o ouvi dizer nada ao telefone! O que você pensa que está fazendo?
- Acha que sou tão idiota assim, coronel? Se eu salvá-lo, assim que se sentir melhor, sei que o senhor vai me colocar atrás das grades!

Watts sentiu que seu fim estava próximo. Talvez fosse impossível convencer Harold de que pudesse não denunciá-lo e deixá-lo em paz. E Harold parecia realmente decidido.

- Me desculpe, senhor. Essa é minha única chance de ter uma ótima vida com minha família, e não posso correr o risco de ter o senhor no meu encalço!

- Vai ter que confiar em mim, Harold, eu o deixarei em paz! – implorou o velho
- Me desculpe... Lamento... – disse Harold, abaixando-se e colocando o chaveiro de couro de volta no bolso de Watts – Acho que está na hora de o senhor descansar...

Harold afastou se lentamente de Watts, que já não tinha mais forças para contestar sua atitude. Voltou para o balcão e sentou-se no banco onde estivera almoçando minutos antes. Colocou a maleta no colo e a abriu novamente. As grandes notas verdes de quinhentos euros fizeram os pensamentos de Harold irem muito longe, especialmente quando, contando o dinheiro de forma rápida, ele constatou que ali havia cerca de meio milhão... E ele ainda podia ouvir o velho Watts chamar por socorro dentro do depósito, e minutos depois, tudo se silenciou.

Ele pegou sua velha bolsa onde carregava o almoço, esvaziou-a e a encheu com os maços de dinheiro, que couberam com muita dificuldade. Harold estava eufórico e nervoso, pois não via a hora de abandonar tudo aquilo e partir para uma nova vida. Porém, era preciso ter cuidado, pois não poderia simplesmente fugir. Ele voltou ao depósito, e a primeira coisa que viu foi o corpo de Watts estendido no chão, com a boca e olhos abertos, com uma expressão de quem havia visto um fantasma. Verificou o coração e o pulso do homem, sem obter qualquer sinal de vida. Harold não sentiu nada, apenas alívio. Agora não teria mais que suportar o homem que lhe tirara toda a auto-estima. Ele guardou sua velha bolsa com o dinheiro em uma prateleira alta e começou a agir como deveria. Correu até o telefone como se estivesse mesmo desesperado e chamou uma ambulância. Na seqüência, correu até a farmácia, que ficava a uns 40 metros dali, e solicitou a presença do farmacêutico na loja, explicando o ocorrido ao homem. E por último, pegou a caderneta telefônica dentro de uma gaveta no balcão e ligou para um irmão do falecido, que era o único parente que parecia fazer contato com ele...

Cerca de uma hora mais tarde, tudo estava terminado: a ambulância levara o corpo do coronel, e o irmão do velho, que morava não muito longe dali, chegara para tomar conta de tudo. O homem adiantou a Harold que a loja não funcionaria mais, pois ele não tinha a menor condição de tocar o negócio por já possuir outros, e que Harold estava então demitido. Ele simulou certa decepção e, após receber uma pequena quantia em dinheiro como indenização, partiu para casa. E mal sabia o irmão de Watts que Harold já providenciara sua própria indenização, que lhe daria o luxo de se aposentar definitivamente!

Harold se dirigiu ao ponto de ônibus. Ele sentia que a qualquer momento ele mesmo teria um ataque cardíaco se não se acalmasse. Ele não conseguia se controlar, e muito menos parar de pensar nas mudanças que viriam. Toda a família se mudaria para outra cidade, numa bela casa, com todo o conforto, e ele poderia abrir um negócio próprio ou até mesmo viver de renda, e ainda poderia fazer uma cara cirurgia que poderia lhe devolver grande parte dos movimentos da perna. Quando finalmente chegou em casa, encontrou a esposa vestindo os dois filhos pequenos que tinham saído do banho. Harold ficou observando-os, em silencio.

- Olá, querido! Porque está em casa tão cedo? Aconteceu alguma coisa?

Harold apenas assentiu com a cabeça com um sim enigmático.

- Não me diga que.... Oh não, não me diga que você se desentendeu com o homem e você foi demitido!

Harold repetiu o gesto com a cabeça, deixando escapar uma ponta de riso.

- Meu Deus, e agora, querido? O que vai ser de nós! Você sabe que mal pode trabalhar, e eu tenho que cuidar dos meninos, e agora?

A pobre Marie começou a chorar e se lamentar, quando Harold aproximou-se da esposa, pegou-a pelos braços e disse:

- Calma, querida. Tudo acabou, para sempre. Vamos começar uma vida nova! Vamos embora desta casa horrível, dessa cidade, eu você e os meninos! Teremos uma linda casa, e eu lhe prometo, nunca mais iremos passar nenhuma necessidade!

Marie afastou-se do marido, incrédula no que acabara de ouvir.

- Você está delirando, homem! Do que você está falando? Nós estamos na miséria como nunca! E você vem falar em “linda casa”? Por acaso você ganhou na loteria?

Harold não se conteve e soltou uma gargalhada, o que provocou mais choro em sua mulher. Ele então se aproximou da mulher e entregou-lhe a velha bolsa onde costumava carregar o almoço.

- Abra – disse Harold, ainda sorridente.

Ao abrir a bolsa e constatar o que havia dentro, Marie ficou ainda mais branca e pálida do que já aparentava ser. Ela apanhou um maço de dinheiro, deixando a bolsa cair no chão quase que involuntariamente. Enquanto olhava as enormes notas esverdeadas, seus pensamentos se embaralhavam, pois era impossível imaginar o que aquela enorme quantia fazia em poder de um homem pobre e aleijado.

- Então é isso? – indagou Marie, enxugando as lágrimas – Ganhou na loteria, querido? Você nunca me contou que apostava nestas coisas... Não posso acreditar!

Quando as faces de Maria se modificaram, e ela começava a vibrar com a suposta novidade, Harold a interrompeu.

- Querida, não foi bem assim, eu nunca apostei em loterias, você sabe que eu não teria dinheiro para isso.

E Harold iniciou o relato do que realmente ocorrera.
Ao terminar de ouvir a história do marido, Marie permaneceu calada.

- Querida, diga alguma coisa! Eu sei que não foi a melhor saída para nós, mas era uma oportunidade única!

- Oportunidade? Harold, você deixou o homem morrer e roubou o dinheiro dele! Você chama isso de oportunidade? Querido, você cometeu um crime!

Marie começou a chorar histericamente, enquanto empurrava o marido, que tentava contê-la, segurando-a.

- Tire estas mãos de mim! – berrou Marie – Deus vai te castigar, homem! Esse dinheiro só vai nos trazer desgraça!
- Não diga uma bobagem dessas – disse Harold – esse dinheiro não é desgraça, é a salvação! Não seja hipócrita, a verdade é que, sem este dinheiro, vamos ser uma família de miseráveis para sempre!
- Não me importo de ser miserável – disse Marie, ainda mais nervosa – O que eu não quero é queimar no inferno por me aproveitar dessa situação! Harold, pense nisso! O homem morreu porque você negou ajuda a ele e depois o roubou!

- Pare com isso, mulher! Mortos não podem gastar! – zombou Harold
- Isso não é o mais grave! Você sabe, só Deus pode tirar a vida de uma pessoa!

Harold explodiu com a mulher, diante de toda aquela discórdia.

- Pare já com isso, Marie! Chega! Não agüento mais essa sua mania de morrer de medo de Deus! Vejo você lendo a Bíblia e rezando toda noite, e o que Deus tem feito por nós? Abra essa mente mulher, e veja que, se Deus existe e gosta de nós, ele hoje nos mandou um presente! Tirou aquele velho ordinário da minha vida, e nos deu condições para viver dignamente! Vamos arrumar nossas coisas e ir embora, amanhã cedo não quero mais estar aqui! Teremos de tudo, casa, um carro, nossos filhos irão para boas escolas...

Marie afastou-se do marido, agora com um semblante frio e decidido.

- Não conte com isso, Harold. Nem eu nem meus filhos iremos desfrutar desse dinheiro sujo, esse dinheiro do demônio! Prefiro ser pobre sim, porém digna, digna de ter paz na eternidade!
- Eternidade? – disse Harold – Sua eternidade será a pobreza e a miséria se não aproveitar esta chance! Essa coisa de religião estragou sua cabeça mesmo, eu sempre disse que essa sua dedicação a essas coisas não ia dar certo! Você está cega!
- Pois bem – disse Marie – Vou lhe dizer uma coisa. Ou você se livra deste maldito dinheiro, ou eu e meus filhos iremos embora hoje mesmo, e você nunca mais nos verá! E você terá que fazer penitencia, muita penitencia, pelo ato horrível que você cometeu!

Harold viu que a coisa estava séria, mas de forma nenhuma pensava em ceder ao pedido da mulher. Ele tinha certeza que se fizesse tudo aquilo, agora sem emprego, a família terminaria na sarjeta como verdadeiros mendigos.

- Tem certeza do que está dizendo, Marie? Não quer pensar melhor sobre isso?
- Não, querido, já me decidi. Se você quiser viver com este dinheiro, nós terminamos aqui. Eu vou pegar os meninos e vou para a casa da minha mãe. Eu e as crianças amamos você, mas se você optar por este caminho do mal, nós vamos nos separar.

Harold viu que não tinha mais saída, teria que optar por manter a família unida, porém com ainda mais dificuldades, ou seguir sozinho numa vida nova e confortável. Era a hora de decidir...

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