quinta-feira, 31 de julho de 2008

ÓDIO MORTAL - PARTE III

Na hora do almoço de Harold, Watts havia ido à Igreja, como fazia todos os dias. Harold estava sentado em um pequeno banco de madeira atrás do balcão de pedra, comendo o seu arroz com couve cozida dentro de uma pequena lata de metal. Ele pousou a lata sobre as pernas, baixou a cabeça e começou a chorar em um tom baixo, sentindo-se a pior criatura sobra a Terra. Sua condição física, a miséria e os maus tratos no trabalho estavam fazendo com que ele desmoronasse por completo. Foi quando um estrondo provocado por um tapa de mãos abertas sobre o balcão deu lhe um susto enorme.

- Senhor Harold, o que eu faço com o senhor? Imagine os meus clientes chegando em meu estabelecimento e se deparando com um funcionário comendo estas coisas asquerosas aqui na frente!

- Mas senhor, eu estava sozinho na loja, alguém poderia entrar e roubar algo, então eu achei melhor...
- Você está sempre me contrariando! – rosnou Watts, indo de encontro a Harold por trás do balcão – Você não tem qualquer disciplina, rapaz! Se tivesse passado pelo exército não seria assim!
- Mas senhor, eu estou quase sempre sozinho aqui, não acho uma boa idéia sair daqui da frente da loja... O senhor poderia contratar alguém para me ajudar, então...

Watts deu uma gargalhada.

- O senhor é um imprestável, sr. Harold! E está se aproveitando de mim! Justo eu, que fiz a caridade de lhe contratar o senhor, que é um inválido, um inútil! Se não fosse por mim o senhor estaria na rua da amargura, o senhor e sua família!

Harold sentiu um frio lhe percorrer a espinha. O velho militar estava passando dos limites. Ele levantou-se e foi para os fundos da loja, onde ficava o depósito, deixando Watts para trás.

- Volte aqui, seu maldito aleijado! Nunca me deixe falando sozinho!

Enquanto percorria com a dificuldade habitual o estreito corredor, Harold sentiu um estalo eu seu cérebro, que o fez sentir como se houvesse uma pedra de gelo dentro de sua cabeça. Começou a tremer e suar frio. Era o ódio e o medo se intercalando dentro de sua mente. Sabia que chegara a seu limite. Watts o alcançou, agarrou-o e o prensou contra uma das paredes do depósito, segurando-o pelo colarinho.

- Seu merda, quem você está pensando que é? Pela sua audácia, vou demiti-lo agora mesmo e jogá-lo no meio da rua, seu verme!

Nesta hora Harold sentiu medo como nunca em sua vida. Os olhos claros do ex-coronel fuzilando-o com ódio estavam deixando-o desesperado. Mas repentinamente, Harold novamente inchou-se do ódio que já o acompanhava há meses. E pensou naquele homem desprezível, porém admirado por todos da cidade como um homem de bem, que servira à pátria por anos e era freqüentador da Igreja. Um homem que dizia ter princípios e ser temente a Deus, mas que se comportava como o próprio Diabo. Harold não sabia o que fazer para se livrar dos braços do velho, que apesar da idade e da magreza tinha um bom condicionamento físico. Naquele instante ele pela primeira vez encarou o patrão e cuspiu-lhe no meio dos olhos, quando aproveitou para empurrar Watts e sair correndo em direção da porta. Mas logo atrás, blasfemando e transbordando de ódio, vinha o sr. Watts.

- Seu rato miserável, vai levar a maior lição de sua vida! – gritou o velho

Ao invés de agarrá-lo por trás, Watts desferiu um forte soco em sua nuca, o que fez Harold despencar de peito no chão, além de bater o nariz com violência contra o piso. Watts pisoteou sua perna direita, a que lhe conferia a invalidez, o que fez o empregado urrar de dor.

- Eu vou matá-lo, seu desgraçado, ninguém encosta um dedo sequer no coronel Joseph Watts!

Enquanto Harold continuava gemendo e se debatendo desesperadamente, acertou a perna esquerda em uma das estantes de aço, e derrubou sobre si mesmo várias barras de ferro de diversas medidas, que rolaram pelo chão. O velho continuava a chutá-lo e insultá-lo, ficando cada vez mais vermelho de ódio, quando de repente as faces de Watts congelaram. Os golpes cessaram, e ele deu alguns passos para trás e apoiou-se contra uma bancada de madeira. Estava ofegante, e mal conseguia pronunciar qualquer palavra.

- Meu Jesus Cristo, meu coração! - disse o velho com dificuldade – Seu imprestável, levante daí e chame uma ambulância, isso tudo é culpa sua! Oh meu Deus, socorro oh Jesus...

Harold não acreditou no que estava presenciando. Já ouvira o velho Watts falar com conhecidos na loja sobre problemas cardíacos e medicamentos que tomava regularmente. E ali estava ele, debruçado na bancada, ficando mais vermelho e inchado a cada segundo. Harold levantou-se, e apanhou do chão uma das barras que caíram, que media cerca de um metro de comprimento e tinha a espessura de uma caneta esferográfica. Cego de ódio, apontou a barra no peito do homem e disse:

- Acha que Deus pode salvá-lo, seu velho desgraçado?
- Pelo amor de Deus, tenha piedade, chame uma ambulância! – implorava Watts
- Agora você vai pagar por tudo o que me fez! – dizia Harold, pressionando a ponta da barra contra o tórax de Watts – Não adianta chamar por Deus, pois hoje o Diabo vem buscá-lo, e o Diabo sou eu!

Harold espumava de ódio, um tanto fora de si, como se alguma força estranha estivesse por trás daquelas palavras. Ao fitar Harold nos olhos, Watts por um momento esquecera das agulhadas que sentia no coração, pois naquela ora o medo de ser assassinado por um homem que devia lhe odiar mais que tudo na vida era muito pior. Segundos depois, tombou de lado no corredor. Harold observava o patrão friamente, sedento para cravar a barra de ferro no peito do homem. Quando segurou firme a barra com as duas mãos, pronto para dar cabo de Watts, o velho implorou:

- Por favor, eu lhe peço, não faça isso. Eu sou militar, é o meu jeito de lidar com as pessoas, nunca lhe fiz nada por mal, não tenho nada contra você!
- Seu miserável, tudo o que me fez passar nesta espelunca não tem perdão! Não tem mais conserto, você me arruinou como homem!

Harold percebeu que aqueles poderiam ser os últimos minutos de vida de Watts, pois a dor que ele sentia no peito parecia estar dilacerando-o completamente.

- O senhor sabe o que é mais incrível? Nem vou precisar sujar minhas mãos com o seu maldito sangue. Você vai morrer aí no chão, todo babado, seu velho nojento, e eu vou ficar aqui assistindo – zombou Harold, largando a barra de ferro e sentando-se sobre o tampo de madeira da bancada.

- Ouça Harold – disse Watts, que naquele momento parecia um tanto aliviado da dor – Aqui, no meu bolso direito – apontou ele – Minhas chaves, uma delas abre minha sala nos fundos, e outra abre a última gaveta da escrivaninha. Há muito dinheiro lá dentro, muito mesmo, parte de minhas economias de toda a vida. É tudo seu, pegue tudo e vá embora! Antes apenas chame uma ambulância, por favor...

Harold não acreditou muito naquela história, mas não tinha nada a perder. Virou o corpo do velho e enfiou a mão em seu bolso, retirando dele um pequeno chaveiro de couro. Em seguida, correu para a sala dos fundos, enquanto Watts continuava a implorar por uma ambulância. Ele jamais tinha entrado naquela sala. O pequeno cômodo era repleto de artefatos militares, tais como bandeiras, flâmulas e medalhas. No meio da sala havia uma antiga escrivaninha de madeira escura com três grandes gavetas. Harold meteu a outra chave na última gaveta, que se abriu com muita dificuldade. Dentro dela havia uma velha maleta de couro marrom. Ao abri-la, Harold quase ficou louco, diante das dezenas de grossos maços de notas de quinhentos euros que ali estavam. Ali deveria ter muito mais do que o pobre Harold ganhara ao longo de seus trinta e três anos. E antes que começassem os devaneios sobre o que poderia fazer com aquela pequena fortuna, ele fechou a maleta, fechou a gaveta à chave e seguiu com a maleta para a fora da sala, sem esquecer de trancá-la.

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